Advogada, integrante da Auad Advogados Associados e associada ao Instituto dos Advogados de Minas Gerais A estratégia que o governo vem usando há alguns anos demonstra o interesse na diminuição de sua responsabilidade quanto ao serviço de saúde pública. Nesse sentido, estimulou a criação no Brasil e a vinda de outros países de empresas especializadas em planos de saúde privada, cooperativas médicas, convênios e outras modalidades de atendimento médico particular e hospitalar e exames; enfim, assistência à população.
Essa tentativa de transferência de responsabilidade de uma obrigação essencialmente estatal demonstrou ser parcial e falha, uma vez que grande parcela da população não tem condições de arcar com esse ônus, que é essencial e historicamente usado em nosso país.
Entretanto, o sistema de saúde privado, criado com falhas, vem aos poucos sendo aperfeiçoado e amoldado pela interpretação jurisprudencial da legislação específica ou afim, como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei 9.656/98 (planos de saúde), o Estatuto do Idoso e também de diversas regulamentações da Agência Nacional de Saúde, além, obviamente, da Constituição Federal.
Tais interpretações vêm restabelecer um equilíbrio na concepção de cidadania, uma vez que o poder das empresas frente ao particular deixava-o à mercê dos contratos essencialmente unilaterais e leoninos formalizados pelas mesmas.
No entanto, isso não significa que se pretenda retirar a força dos contratos, mas apenas que nos dias de hoje os princípios da autonomia da vontade, da intangibilidade e da obrigatoriedade não são mais encarados pelas concepções clássicas antes reinantes, eis que modernamente é inegável o prestígio da boa-fé e da função social dos contratos, principalmente nas relações caracterizadas como de consumo.
Na busca do equilíbrio contratual, a sociedade de consumo moderna utiliza a lei como limitadora e como adequada legitimadora da autonomia da vontade. A legislação atual valoriza a confiança, as expectativas e a boa fé dos contratantes frente ao acordo. No entanto, normas imperativas reduzem o espaço de vontade e a dominação particular.
A concepção moderna de contrato, cunhada no princípio da função social e da boa-fé, ganha lugar frente ao interesse privado, fazendo surgir um componente alheio às partes, mas fundamental para a coletividade como um todo: o interesse social.
Nesse contexto, em muitos planos de saúde, na proposta de adesão fica estabelecido unilateralmente pela empresa que o valor mensal do plano, quando os consumidores completarem 60 anos, será dobrado, ou seja, haverá reajuste de cerca de 100% (em alguns planos, tal reajuste é ainda superior).
O reajuste em virtude da existência da cláusula contida no contrato em razão da idade é absolutamente ilegal, pois viola o artigo 15, § 3º, da Lei 10.741/03 – Estatuto do Idoso, que estabelece: “É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”.
Tal dispositivo resulta da proteção constitucional conferida aos idosos/consumidores, como fundamento da República (dignidade da pessoa humana, artigo 1º, III), como direito fundamental no artigo 5º, XXXII, como princípio geral da ordem econômica (artigo 170, V), como mandamento constitucional (artigo 48 ADCT), bem como princípio constitucional de amparo às pessoas idosas (artigo 230), com mandamento de tutela de sua dignidade e bem-estar.
Há de se observar que a aplicação do Estatuto do Idoso a um contrato de prestação de serviços firmado anteriormente à sua entrada em vigor, por diversas razões jurídicas, não viola o princípio do ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI, da Constituição de 1988).
Inicialmente, porque as normas constitucionais acima descritas são de aplicação imediata, pois considerados direitos fundamentais desde a publicação da Constituição da República de 1988, não dependendo de normas infraconstitucionais para lhes garantir efetividade. Não é crível se imaginar que antes da publicação do Estatuto do Idoso era permitida a discriminação aos idosos!!!
Em seguida, porque o reajuste da mensalidade, a par de sua flagrante abusividade de tais reajustes face ao Código de Defesa do Consumidor, somente poderia acorrer quando e apenas se os consumidores viessem a completar 60 anos, ou seja, o direito ao reajuste estava sujeito à condição (fato futuro e incerto), que, em muitos casos, quando implementada, já não mais era permitida pelo ordenamento jurídico.
A cláusula relacionada ao aumento da mensalidade em função da implementação dos 60 anos de idade passou a gerar efeitos concretos quando o direito brasileiro, agora de forma explícita, não mais contemplava a validade dessa espécie de ajuste.
Sobre o assunto, importante ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou pela aplicação imediata do Estatuto do Idoso aos contratos de plano de saúde celebrados anteriormente à sua vigência, no julgamento do REsp. nº 989380/RN.
Em trecho do seu voto, a ministra relatora Nancy Andrigh, consignou que “o interesse social que subjaz do Estatuto do Idoso exige sua incidência aos contratos de trato sucessivo, assim considerados os planos de saúde, ainda que firmados anteriormente à vigência do Estatuto Protetivo (...) Veda-se a discriminação do idoso em razão da idade, nos termos do artigo 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, o que impede especificamente o reajuste das mensalidades dos planos de saúde que se derem por mudança de faixa etária (...)”.
Assim, pode-se afirmar que a majoração de cobrança de mensalidades dos planos de saúde em razão da mudança de faixa etária está em flagrante desacordo com o Estatuto do Idoso, a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor.