Princípios essenciais do Estado de Direito são ignorados pelas propostas ? três projetos de lei e um projeto de lei complementar ? que o governo Lula enviou ao Congresso a pretexto de "modernizar" a administração tributária e tornar sua atuação "mais transparente, célere e eficiente". Garantias constitucionais como a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do sigilo de dados são desacatadas pelas propostas. A Receita Federal disporá de tantos poderes que poderá agir como polícia e até substituir o Judiciário.
É dever do Congresso modificar profundamente o texto encaminhado pelo Executivo, para dele eliminar as aberrações, ou simplesmente rejeitar as propostas, pois elas "instituem diversos instrumentos de tortura e violência para pressionar e amedrontar os contribuintes, no pressuposto de que todos sejam sonegadores de tributos", como escreveu o advogado e ex-procurador-geral da Fazenda Nacional Cid Heráclito de Queiroz, em artigo publicado no Estado do último dia 5. Generosamente, o autor isenta o chefe do governo de responsabilidade nesse caso: "O presidente não deve ter lido tais projetos."
Tenha ou não lido, o presidente assinou a mensagem encaminhando os textos ao Congresso em abril, com o pedido de tramitação em regime de urgência. Mas, em razão da complexidade do tema e do caráter polêmico de muitos de seus itens, o pedido foi retirado.
Por isso, os projetos estavam parados desde setembro. Agora, como mostrou reportagem de Renato Andrade publicada no Estado de quinta-feira, começaram a avançar na Câmara, que, para examiná-los, criou uma comissão especial da dívida ativa. Entre as várias propostas está a criação de mecanismos mais duros de cobrança das dívidas ativas, entre os quais o poder da Fazenda Pública de quebrar sigilo de contribuintes, penhorar bens e até arrombar portas, sem autorização prévia do Judiciário.
Imagine-se o caso de um contribuinte cujos bens tenham sido penhorados pela Receita. Legitimamente, o contribuinte decide recorrer à Justiça contra o Fisco, mas este poderá, antes da sentença judicial, levar a leilão os bens penhorados. Em média, os leilões arrecadam 30% do valor de mercado dos bens. Se o contribuinte vencer na Justiça, a Receita lhe entregará o produto do leilão, ou 30% do valor do bem penhorado. Terá sido vítima de duplo confisco, um, no momento da penhora do bem, outro, no momento em que a Receita lhe devolver apenas parte do valor a que tem direito.
O pacote, disse o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, "joga no lixo a presunção da inocência, que vale para todo o cidadão, tenha ou não problemas com a Receita". Ao impor a administradores de empresas a responsabilidade subsidiária pela dívida, obrigando-os a prestar informações sobre o paradeiro e o patrimônio do devedor, a proposta viola garantias constitucionais, como "a inviolabilidade da intimidade e a livre manifestação do pensamento, que envolve o direito ao silêncio", afirmou Cid Heráclito no artigo.
Um dos projetos cria o Sistema Nacional de Informações Patrimoniais dos Contribuintes, destinado a permitir à Receita "o acesso eletrônico às bases de informação patrimonial de contribuintes, contemplando informações sobre o patrimônio, os rendimentos e os endereços, entre outras" e terá como base as informações de todos os órgãos e entidades públicos e privados "que por obrigação legal operem cadastros, registros e controle de operações de bens e direitos". Aqui, o ex-procurador-geral da Fazenda Nacional vê "agressão à garantia constitucional, à inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do sigilo de dados".
A criação da transação tributária, a ser celebrada numa câmara de conciliação da Fazenda Nacional, por sua vez, daria a um órgão administrativo o poder de cancelar dívida, no que pode ser interpretado como usurpação de competência exclusiva da Justiça.
Há, ainda, uma proposta que Cid Heráclito chama de "romântica", baseada na crença da fidelidade dos contribuintes ao Fisco. Trata-se da responsabilização do administrador que não provar que cumpre suas funções "com o dever de diligência que a lei lhe incumbe".
Embora o governo alegue que sua proposta busca o equilíbrio entre o Fisco e o contribuinte e "prestigia as garantias constitucionais dos contribuintes", o que fica claro é que o texto fere direitos e garantias, atalhando caminho para a ditadura do Fisco.