Em joia literária de autoria do jurista Pierro Calamandrei, O elogio aos juízes, o autor defende que o maior perigo para um magistrado não é a corrupção, nem as interferências políticas nem nada que venha de fora para dentro. A grande ameaça, segundo a perspicácia do genial italiano, faz caminho inverso. Trata-se do exaurimento da consciência humana. Em outras palavras, da preguiça moral. A percepção é irretocável. A sociedade vê, sabe e comenta casos de desvios de conduta no Terceiro Poder. Se há fôlego para elaborar sobre o tema, é sinal que não se deve enxergá-lo como tão comum ou vulgar.
Em contrapartida, o mal da resignação – a indolência intelectual – pasme-se, não atrai tanto a atenção. Não chega a ser uma cor em um cenário preto e branco ou, tampouco, movimento em painel estático. A redução dos magistrados a ermos isolados e inermes é admitida como essência da instituição. Quem ousa imaginar ou cobrar a existência de um juiz que se indigne diante dos males que lhe são noticiados? Ah, é querer muito de um juiz... ser juiz e ainda ser humano!
E ai dos juízes que tentam fugir do script ou viver o dia a dia da judicatura de forma ativa e participativa. Benditos sejam eles, porque deles serão todas as suspeitas negativas da Terra. A inversão do juiz vilão pelo juiz mocinho parte do equívoco mitológico em se tomar a imparcialidade como neutralidade. Os conceitos são paradoxais, todavia. O juiz que não participa, que não tem ideias, que não fala à sociedade, que não interage, que não enfrenta o cotidiano do cidadão é ele, sim, parcial. E está do lado da injustiça.
Nem a redoma de vidro, nem o quarto escuro de isolamento são habitats naturais para o agente que sói ser a esperança do amanhã e da correção para todos aqueles consumidores do bem maior e o sonho da humanidade que é a justiça. Quando nossa visão de mundo era baseada em conceitos de liberdade, igualdade formal e propriedade, sem compromisso com a repercussão do exercício de direitos individuais na coletividade, bem-vindo um juiz-voyeur, amuleto do Estado mínimo. Hoje queremos o máximo. O máximo, diante do caos das instituições democráticas, é, (in)felizmente, a expectativa de um Judiciário “salvador da pátria”, que toma para si a responsabilidade pela efetividade da Constituição brasileira idealizada por Capistrano de Abreu, a qual teria artigo único: “Todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha na cara”. Não se diz certa nem justa a judicialização de nossas questões sociais, mas, sem dúvida, é artigo único com o qual se tem podido contar.
O Superior Tribunal de Justiça decidiu manter o juiz Fausto de Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, à frente do processo envolvendo o empresário investigado por crimes financeiros na Operação Satiagraha, da Polícia Federal. O magistrado era suspeito de parcialidade no caso. De acordo com a defesa, o juiz deveria ser declarado suspeito, já que emitia suas opiniões parcialmente, e todas as suas decisões deveriam ser anuladas. O juiz, corajoso, independente e submetido unicamente à lei, continuará à frente do processo.
Chamam de “princípio do juiz natural” o respeito da escolha aleatória do magistrado a atuar em cada processo. Em outras palavras, reza a Constituição federal que ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente – e não haverá juízo ou tribunal de exceção. Assim, se é certo que ninguém pode ser subtraído de seu juiz, também é certo que ninguém poderá obter qualquer privilégio ou escolher o juízo que lhe aprouver. Um juiz neutro pode ser até o mais comum, mas não chega a ser um direito daquele que quer fugir da Justiça.
A decisão, portanto, aplicou o princípio do juiz natural. O “natural” é que, portanto, o juiz De Sanctis continue à frente do caso. O “natural” é que os juízes sejam imparciais, mas não neutros. Daí, é preciso encarar com “naturalidade” o que ao menos já deveria ser natural, ou seja, um juiz que ouve o que se diz por aí – que fala livremente, que sente, compreende e interage.
A decisão do STJ é digna de aplausos e revela que a postura tida por “natural” e querida pelos advogados que suscitaram o incidente é, em verdade, um anseio viciado pelo déficit de reconhecimento do grande desafio da magistratura. É complacente com nossa falta de fé em um Judiciário melhor, reputada pela magistratura adormecida e afastada que sempre tivemos e não queremos mais.
A sociedade quer conhecer o que se passa na cabeça dos juízes. Fiscalizar, participar, dialogar. A sociedade quer juízes sobrenaturais.