Os cidadãos geralmente presumem que a Constituição é um todo harmônico que responde ao conjunto dos problemas públicos e privados, com a coerência que permite a sobrevivência institucional estável. Esta nem sempre é a realidade e, muitas vezes, as dessintonias constitucionais são a origem de crises institucionais que a própria Constituição não responde, dificultando, mesmo na forma de ações judiciais, a prudente ação principalmente dos Tribunais Superiores.
Hans Kelsen (1873 / 1973), o grande jurista austríaco do século 20, tendo vivido longo tempo em Harvard / EUA que contribuiu para a construção da Constituição de Weimar (1919), e redigiu a Constituição Austríaca (1920), quando se criou o Tribunal Constitucional, procurou desenvolver uma convincente teoria sobre a coerência normativa interna a partir dos pressupostos constitucionais. Todavia, definindo as variáveis que presidem a estrutura da Ordem jurídica, o jurista identificou que a Ordem, não apenas tinha uma dimensão de coerência hierárquica, mas convivia com conflitos normativos e, no seu conjunto, possuía diversas lacunas hipoteticamente colmatáveis através de ações de efeito jurisprudencial produzida pelos tribunais superiores.
A Constituição brasileira de 1988, devido à sucessiva superposição de Emendas Constitucionais (cerca de 60), assumiu uma natureza ímpar, permitindo que o seu corpo geral mais se explique pelos conflitos e lacunas intrasistêmicas do que pela sua coesão normativa interna. Neste sentido, ganharam dimensões discursivas abertas questões que envolvem a ordem política, fragilizando significativamente os mecanismos de controle da constitucionalidade e os mecanismos constitucionais de controle de situações políticas complexas.
A recente crise do Distrito Federal, neste sentido, abre o espaço discursivo necessário para que se avalie a sua evolução não apenas em função dos movimentos de seus atores, mas principalmente através dos mecanismos constitucionais que podem viabilizar a sua superação: o impeachment de autoridades executivas e legislativas e a intervenção política nos poderes Executivo e Legislativo. O texto constitucional não propriamente se estende sobre o item referente ao impeachment, mas tem informações suficientes sobre a questão da intervenção política (no caso em poderes do Distrito Federal), hoje suscetível direta ou indiretamente a 9 (nove) emendas que desequilibraram a matéria constitucional originária.
Neste sentido, desde sua redação originária a Constituição é bastante objetiva quando dispõe que dentre as funções institucionais do Ministério Público está aquela de promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados nos casos previstos nesta Constituição (IV, 129). Por outro lado, em linha complementar, dispositivo constitucional dispõe que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para (34): ( ) pôr têrmo a grave comprometimento de ordem pública (III) ou garantir o livre exercício de qualquer dos poderes nas unidades da federação (IV).
Aplicadamente a questão parece linear, mas na verdade, a representação de intervenção no caso concreto do Distrito Federal, apesar da visibilidade alcançada na interrupção das ações do Poder Judiciário ainda não está suficientemente visível no que concerne ao grave comprometimento da ordem pública, aliás, um dispositivo que, como veremos na forma do texto constitucional não tem uma explícita dimensão de eficácia. Todavia, é claro, se os deputados, não propriamente na ausência de evidência dos fatos, mas de suporte jurídico, poderão evoluir para a solução localista do impeachment dos autores executivos e legislativos, o que em princípio já foi detonado, e não poderá ser interrompido, o que demonstrará a fragilidade da proposta de intervenção federal ou, no caso, a sua ineficácia.
Não há como negar, todavia, que na evidência o (os) autor (es) provocaram a desagregação da crise de direito comum, segundo noticiário judicial, procurando subornar autoridade pública ou trouxeram aos autos documentos falsos (noticiário jornalístico), condutas que caracterizam a figura constitucional típica de interceptação do livre exercício de poderes (34, IV). Em qualquer dos casos, as figuras constitucionais típicas, a primeira poderia gerar efeitos interruptivos em ação que já tramita no Superior Tribunal de Justiça - STJ, à medida que a este Tribunal compete processar e julgar originariamente (104) nos crimes comuns, os governadores dos Estados e do Distrito Federal (105, I, a), excetuados os crimes de responsabilidade, que, também não estão restritos a órbita judiciária, o que fragiliza o livre exercício (do Poder Judiciário) no Distrito Federal.
De qualquer forma, esta questão pode ser como está sendo apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, porque se inclui dentre as suas competências julgar e processar originariamente habeas corpus em caso de crime comum de governador de Estado ou do Distrito Federal (102, I, i). Esta posição se torna mais explicita à medida que a solicitação de intervenção federal dependerá (36) de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida pelo Poder Judiciário (102, I, i). Vê-se, por conseguinte, que tudo indica a efetiva similaridade com o caso da crise do Distrito Federal, vista da perspectiva do crime comum, deixando faltar ao Supremo iniciativas fundamentais para a eficácia da decisão.
Por outro lado, e esta nos parece uma especialíssima leitura, quando se verifica que compete ao STF julgar e processar originariamente diferentes itens de conduta (102, I) não se identifica em qualquer das letras sua explícita competência para decidir sobre intervenção nos estados ou no Distrito Federal (34) para por termo a grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III), deixando, por conseguinte, em aberto figura constitucional típica de grave turbulência e desajuste entre poderes (que só se complica por eventuais renúncias), ou funcionamento anômico ou entrópico de qualquer dos poderes. Da mesma forma, dentre estas competências do STF está aquela de provocar a intervenção federal (49, IV) nos casos de necessidade de se garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação (34, IV) mas, não tão simplesmente.
Nestes casos, resta observar que os caminhos constitucionais federais para intervenção em estados ou Distrito Federal são estreitos e poderão exigir um esforço hermenêutico juridicamente extensivo mas nem sempre politicamente aconselhável. Para concluir, deve-se observar que o Decreto de intervenção presidencial (84, X c.c. art. 36, § 1º.), conseqüente de apreciação positiva do Supremo Tribunal Federal, nos casos originários de violação do livre exercício dos poderes (34, IV) deverá, ser necessariamente aprovado pelo Congresso Nacional (49, IV), sendo que, voltamos a repetir, silencia-se a Constituição sobre a competência da União para intervir nos casos em que os Estados ou o Distrito Federal envolvam-se em grave comprometimento da ordem pública (34, III). Esta posição, mais se fortalece à medida que durante a vigência da intervenção federal fica suspensa a tramitação de Emendas Constitucionais.
Finalmente, o texto constitucional, independentemente de procurar reconhecer a autonomia dos poderes da União, fortaleceu significativamente o princípio federativo, resguardando a autonomia dos Estados, reconhecendo, inclusive, inovadoramente, o status de Estado ao Distrito Federal, como unidade administrativa da União, se lhe reconhecendo todos os direitos dos entes federativos - Estados e Municípios. Nestas condições, do ponto de vista da legalidade constitucional, remanesceu, apenas, em caso de crise institucional do Distrito Federal, a remota intervenção resultante de flagrante violação do exercício dos poderes ou a figura típica do impeachment, na forma da Lei Orgânica Distrital no que não estiver em conflito com a histórica Lei federal sobre a matéria.