Cumpre-me, de início, assumir que certamente estou a incursionar em sítio jurídico a respeito do qual meus parcos conhecimentos tornaram-se ainda mais rarefeitos com o passar dos anos e pelo exercício funcional como magistrado, por duas décadas, exclusivamente na área cível. Minhas escusas, portanto, aos especialistas do tema. A ideia de alinhavar estas irresignadas linhas decorreu, em verdade, de uma compulsão irresistível provocada em face do assassinato do jovem Alcides do Nascimento Lins, 22 anos, barbaramente trucidado em sua própria casa na sexta-feira 5/02/10... data a ser erigida como mais uma chaga aberta na consciência social pela violência selvagem e descontrolada que tomou conta deste país.
Esta abordagem tem um foco específico: diz respeito ao que em Direito Penal se denomina "dosimetria da penas" ou seja, a aplicação pelo juiz criminal, do conjunto de disposições normativas que vão culminar na fixação da pena a serimputada ao condenado. O Código Penal em vigor desde dezembro de 1940 (Dec.lei nº 2.848) regula o assunto entre os seus artigos 59 a 76 de um modo geral. Assim, ao aplicá-las, deve o julgador observar o sistema trifásico de dosimetria adotado a partir de 1984, através do qual deve o juiz ater-se, de início, às circunstâncias de natureza tanto subjetiva quanto objetiva, como a culpabilidade, os antecedentes, a personalidade do agente, os motivos, o comportamento da vítima dentre outros aspectos. Em seguida, verificará as circunstâncias agravantes, que estão previstas nos arts. 61 e 62 e as atenuantes nos 65 e 66 do CP. Por último, temos as causas de aumento e diminuição da pena que se acham dispersas nas Partes Geral e Especial do Código Penal, não se afeiçoando aqui possível detalhá-las.
Pois bem. Deparamo-nos, então, com uma constatação interessante: à exceção do comportamento da vítima, as demais circunstâncias e causas de diminuição e aumento da pena dizem respeito às condições pessoais do violador da norma penal. Damásio de Jesus, um dos mais respeitados juristas criminais brasileiros assevera que "as circunstâncias subjetivas (ou pessoais) são as que só dizem respeito à pessoa o agente, sem qualquer relação com a materialidade do crime, como os motivos determinantes, suas condições ou qualidades pessoais e relações com o ofendido". Nesse exíguo espaço é o bastante para constatarmos que, salvante juízo mais aprofundado dos experts ou ressalvada a hipótese da existência ainda obscura de algum projeto de reforma do codex penalista, as condições pessoais da vítima são desconsideradas para a mensuração da sanção penal a ser aplicada. Como bem o sabem os profissionais que atuam nas trincheiras civis, as condições pessoais daquele que teve seus direitos malferidos são convenientemente contempladas na esfera cível, por ocasião da determinação das compensações morais e materiais cabíveis. No âmbito penal, repita-se, apenas se vislumbra o comportamento da vítima como circunstância judicial objetiva para se admitir oaumento ou diminuição da pena do agressor.
Com todas as vênias possíveis, essa realidade não pode mais perdurar. A comoção nacional provocada pela barbaridade praticada contra o jovem Alcides do Nascimento Lins no dia 5 de fevereiro de 2010 está a clamar por uma mudança substancial das normas penais e do pensamento daqueles a quem se atribuí o dever de interpretá-las e aplicá-las
Quando um presidiário foragido, pluri-homicida, assaltante, traficante, matador temido na comunidade, portador de personalidade voltada para a violência e elevado nível de periculosidade, tendo como coadjuvante um "adolescente" de 16 anos (o termo adolescens do latim significava crescer, atingir a maturidade), juntos põem um final absurdo à vida de um jovem promissor de 22 anos, de origem social humilde e filho de uma catadora do lixo produzido pela sociedade de consumo a que não tinha acesso, que por esforço próprio logrou aprovação em primeiro lugar geral entre todos os estudantes da rede pública no vestibular de 2007, estagiandono Hemope com apoio da Facepe, prestes a se formar, não foi apenas sua mãe e familiares que perderam um ente amado. Perderam-se sonhos. Perdeu-se a esperança. A sombra da dúvida e do medo se fez e se faz cada vez mais presente e palpável. A eficácia do contrato social rousseauniano está posta em dúvida.
Estamos pois diante de um ato humano abominável que reclama a reforma do Código Penal visando, com sua atualização, a assimilação das condições pessoais da vítima, suas qualidades, sua personalidade, sua integração social e especialmente o trabalho profícuo desenvolvido em prol da sociedade ou a potencial capacidade de contribuir para o aprimoramento dos valores comunitários, como era o caso de Alcides. Tais aspectos deveriam, pois, constar como fatores de maior apenamento do deliquente, notadamente nos crimes contra as pessoas.
Melhor se faria, ao meu sentir, vendo considerados os danos reiteradamente experimentados na sociedade, que se admitisse a previsão da figura típica do crime de lesa sociedade (nullumcrimen, nulla poena sine lege). Ouçam-se as vozes consagradas dos estudiosos da criminologia. Mas não se olvidem os brados do povo.